Há 16 anos nascia o projeto «A música portuguesa a gostar dela própria», criado por Tiago Pereira, que colecionou milhares de vídeos sobre a música portuguesa e tradição oral de todos os cantos do país. Para o 5L e o Dia Mundial da Língua Portuguesa, criou duas curtas-metragens: A Língua Portuguesa a Gostar Dela Própria, que regista a musicalidade dos sotaques, pronúncias e dialetos portugueses; e Vozes de Portugal, onde vários escritores brasileiros, africanos e portugueses leem o trecho de um conto de Luandino Vieira.
Vais participar nesta comemoração do Dia Mundial da Língua Portuguesa com duas curtas-metragens, A Língua Portuguesa a Gostar Dela Própria e Vozes de Portugal. Em que consistem estes dois registos?
Partem do trabalho realizado no projeto «A música portuguesa a gostar dela própria», que tem gravado pelo país todo, e agarrar nas partes em que conversamos com as pessoas nesse projeto e criar um filme de cinco minutos. É um objeto artístico que nos permite perceber a riqueza e a variedade linguística do país, desde os sotaques, pronúncias, trejeitos, dialetos. Foram escolhidos registos de muitas pessoas, que depois misturamos como se fosse uma música. No fundo, é uma música com pessoas a falar com sotaques e pronúncias diferentes.
E Vozes de Portugal, em que consiste?
Aí é diferente, porque os convidados (escritores dos diferentes países lusófonos) leem o excerto de um conto («Memória Narrativa ao Sol de Kinaxixi», de Luandino Vieira), e o que se pretende é perceber a diferença das várias formas de falar português no mundo. Vamos ter convidados de três continentes diferentes (Europa, América e África) a ler o mesmo texto, e não se pretende tanto a lógica musical do «A língua portuguesa a gostar dela própria».
Com este paralelo entre «A música portuguesa a gostar dela própria» e A Língua Portuguesa a Gostar Dela Própria, consegues estabelecer uma ligação entre a musicalidade dos sotaques e pronúncias com a música produzida nas regiões de onde eles são originários? Ou seja, há algum tipo de contaminação entre o falar e o cantar?
Eu não diria que é exatamente uma contaminação. Obviamente que há um ritmo. Nas palavras há sempre um ritmo, as formas de falar indicam sempre ritmos. Há pronúncias mais cantadas, outras mais pausadas, e isso consegue-se perceber. Eu sempre estive atento a isso n’«A música portuguesa a gostar dela própria», até porque conseguimos identificar 10 a 15 sotaques diferentes sem sair da mesma aldeia. Às vezes, na mesma vila, temos um sotaque numa ponta e outro noutra, e isso claramente indica um ponto de vista musical. Agora, se eles cantam com mais musicalidade por causa disso, não sei dizer.
Há em Portugal uma espécie de penalização do sotaque. Se alguém fala, nos meios de comunicação social, com um sotaque fora do que poderíamos chamar de «padrão culto», há uma reação de riso, de chacota para com um sinal de potencial provincianismo. Achas que esta reação acaba por empobrecer a língua portuguesa?
Empobrece muito. Tu vês isso quando olhas para os estudantes deslocados para longe da sua área de residência e que sofrem bullying pela forma como falam. Naturalmente que alguns têm orgulho e mantêm a forma como falam e vão resistindo ao gozo, mas outros não conseguem resistir e vão mudando a forma como falam. Isso é evidente há muito tempo. E Portugal nunca apostou nessa diversidade. O Brasil fez essa aposta, inclusive nas novelas, e em Portugal tens sempre o português falado da mesma maneira. Mesmo quando vês uma série como Bem-Vindos a Beirais, ou algo do género — que se passa num sítio que não se pode identificar muito bem, mas que não é um centro urbano —, eles continuam a falar da mesma maneira como se estivessem em Lisboa. Isso faz com que não se note que os sotaques e as pronúncias são imensas, e que isso tem muito valor. Mas há quem resista, os Alentejanos e os Transmontanos resistem ao gozo e continuam a defender os seus sotaques e pronúncias. Uma amiga minha conta-me que na escola, no Porto, uma vez um professor respondendo a um aluno disse: «Não concordo nadica, nadica com isso.» Obviamente que era transmontano e não tinha vergonha nenhuma em demonstrá-lo. O que é maravilhoso num país é existir variedade e não ceder à uniformização.
O mesmo se passa com o português falado noutros espaços lusófonos. Nós convivemos bem com o português do Brasil numa telenovela, mas já há alguma resistência em ouvir um jornalista com sotaque do Brasil a fazer uma peça do noticiário sobre um assunto que não se passe no Brasil (e ainda bem que há um canal que tem contrariado esta lógica).
É falta de hábito. Se tivéssemos um jornalista com um sotaque pronunciado do Norte ou do Algarve, já estávamos habituados a isso e não notávamos. Mas, como estamos uniformizados na forma de falar — e isso foi muito feito pela rádio, que uniformizou a forma de cantar e também de falar —, naturalmente temos mais resistências à diferença.
Antes desta pandemia, estavas a trabalhar na ampliação do teu projeto para «A música ibérica a gostar dela própria». Imaginas a possibilidade de levar este A Língua Portuguesa a Gostar Dela Própria mais longe e fazer uma versão que se pudesse estender aos países lusófonos? Um registo do português no Huambo, no interior do Amazonas, em Baucau, ou achas utópico pensar nisso?
Nunca vejo utopias nessas coisas. Exploro sempre aquilo que pode ser o cantar ou a tradição oral da língua portuguesa. Tanto que o ano passado fui ao Japão gravar japoneses que cantam música portuguesa. Tento fazer isso em todo o lado. Este ano, por exemplo, tinha previsto ir a Goa fazer o mesmo. Vejo essa possibilidade como uma continuação da linha que «A música portuguesa a gostar dela própria» já tem.
Já te ouvi dizer que te sentes iberista. Para ti, é mais forte e evidente a ligação com a cultura ibérica do que com a cultura lusófona? Ou seja, sentes-te mais próximo da Andaluzia, da Catalunha, do que da Guiné-Bissau ou Timor?
Acho que qualquer português tem de aceitar que é uma mistura de muitas coisas. Em Portugal, sempre conviveram muitos povos e estiveram cá durante muito tempo. Os Árabes estiveram aqui 900 anos, mas o importante é tudo aquilo que eles deixaram ficar e ainda está presente no que fazemos. Fomos contaminados por muitas culturas. Somos uma soma de várias coisas, e por isso não me sinto mais iberista que lusófono. Também não me sinto mais europeu, africano ou americano, sinto-me uma soma de várias coisas. Vivi em Lisboa e agora vivo em Serpins, e nem por isso digo que sou da Lousã. Vivia em Lisboa e não me sentia dali, sinto-me do país todo. Quando estava no Japão a ouvir um japonês cantar em português, sentia-me tão próximo dele como de uma velhinha daqui a cantar uma modinha.