Germano Almeida é um dos escritores cabo-verdianos mais conhecidos e reconhecidos. Prémio Camões em 2018, é um dos nomes convidados a participar nas comemorações do primeiro Dia Mundial da Língua Portuguesa organizadas pela Câmara Municipal de Lisboa, e que servem de antecâmara ao Festival 5L de 2021. Para ele, «escrever há de ser sempre um ato de prazer».

Estamos a fazer esta entrevista por causa da celebração do primeiro Dia Mundial da Língua Portuguesa, que também serve de mote para a edição deste ano do Festival 5L. Como é que Germano Almeida, cabo-verdiano, com dupla língua oficial, olha para a língua portuguesa?

Pessoalmente, olho com muito carinho. Costumo dizer que a língua portuguesa é a minha língua paterna, na medida em que o meu pai só falava português, enquanto o crioulo é a minha língua materna, na medida em que a minha mãe só falava crioulo. Cresci nesse ambiente familiar, falando português ou crioulo conforme a minha vontade. Nunca ninguém me impôs uma língua ou outra. Toda a minha educação, quer escolar, quer social e cultural, foi feita com a língua portuguesa. Por isso, confesso que tenho uma grande paixão pela língua portuguesa.

E escreve em português?

Sim, só escrevo em português. Não sei escrever em crioulo. Tenho pena, mas não consigo.

O que falta fazer pela língua portuguesa, falada por tantos milhões?

Penso muito mais no meu país do que em estratégias globais. E tenho insistido na necessidade de, em Cabo Verde, dominarmos a língua portuguesa como instrumento de contacto com o mundo. Até há poucos anos, não se dava grande importância à língua portuguesa. Felizmente, neste momento, já se reconhece que a língua portuguesa é tanto dos Portugueses como nossa, e constato nas visitas que faço a escolas que os alunos, sobretudo da instrução básica, já estão a falar português com à-vontade.

E isso é a base para o desenvolvimento da língua? Aprender a falar, a escrever e a ler?

Antes da independência era proibido falar crioulo. Foi um erro gravíssimo dos tempos coloniais. A seguir à independência, começou-se a falar excessivamente em crioulo, esquecendo que o português era a nossa língua de contacto. Continuámos nisto durante muitos anos, com grande prejuízo para o ensino. Os próprios professores já dominavam mal a língua portuguesa. E se eles dominarem mal a língua, os alunos vão aprender mal. Felizmente, estamos a corrigir este erro e acredito que em meia dúzia de anos o português estará a um nível semelhante ao que tínhamos antigamente.

Como surgiu o pseudónimo Romualdo Cruz?

Foi numa brincadeira. Quando resolvi publicar as minhas histórias na revista Ponto e Vírgula, já era advogado e tinha nome na praça. Achei que não ficava bem escrever essas histórias malucas com o mesmo nome. Então, decidi criar um pseudónimo em homenagem aos meus filhos. Chamam-se Raquel e Nuno, e comecei a pensar em como juntar esses dois nomes. Saiu Romualdo. Não valeu de nada porque em Cabo Verde todos nos conhecemos, e ninguém aceitava desconhecer quem era o sujeito que escrevia aquelas histórias. As pessoas não descansaram enquanto não descobriram quem era o Romualdo Cruz. E não valia a pena continuar a publicar com este nome, já toda a gente sabia quem eu era…

Sempre escreveu ou a ficção foi uma vocação tardia? Começou a publicar já tarde…

Sempre escrevi ficção, mas publiquei tardíssimo. Escrevia pelo prazer de escrever, mas sem pensar em publicar. Comecei a publicar na Ponto e Vírgula por necessidade de preenchermos páginas da revista. Não tinha essa ambição. Na verdade, publiquei muitos livros num curto lapso de tempo porque a maioria já estavam escritos.

É uma daquelas pessoas que está sempre a sorrir. Na vida e nos livros. É verdade ou é impressão?

Estou sempre a divertir-me. Escrevo para me divertir. Quando escrevo, tenho um interlocutor a quem conto uma história, não é um ato isolado. Mas, se essa história não for prazerosa para mim e para esse ouvinte virtual, não vale a pena escrevê-la. Dou-me bem com a vida, devo dizer. Ela nem sempre me trata como eu gostaria, mas continuo a achar que nos damos bem. Assim, não vejo razão para me entristecer excessivamente.

Sempre se divertiu a escrever ou houve alturas em que as coisas não saíam bem?

O ato de escrever foi sempre prazeroso. Mas nem sempre escrevi coisas que me davam prazer. Lembro-me da primeira história que escrevi, tinha 16 anos. Li-a à minha família e toda a gente ficou a chorar. Fiquei a pensar: não era isto que pretendia, quero divertir as pessoas. Com o tempo e as leituras que fiz — Eça de Queiroz, Jorge Amado, mais tarde García Márquez —, acabei mudando porque foram autores que me despertaram um outro lado da escrita. Em Cabo Verde, temos a ideia de que o papel é coisa séria. Não se pode brincar quando se escreve. Aprendi com esses escritores exatamente o contrário, que se pode e deve brincar quando se escreve.

Sente que há uma diferença entre o peso de quem põe histórias no papel e o contador de histórias da tradição oral, a quem é permitido ser muito mais leve e divertido?

Por isso evito que a escrita não perturbe a oralidade da linguagem. Imagino um interlocutor a quem estou a contar a história quando escrevo um livro, para que a diferença entre a linguagem escrita e a linguagem oral não seja grande.

Pego em duas personagens suas — o senhor Napomuceno e o Fiel Defunto — que deixam heranças, cada um à sua maneira, e que servem de ponto de partida para a narrativa dos livros. É isso que um escritor faz? Deixa uma herança que serve de ponto de partida para o leitor?

Não sei. Quando escrevo, faço-o pelo prazer de escrever e porque quero contar uma história. Claro que o leitor tem o direito de interpretar uma história da maneira que entender. Não podemos interferir nesse processo. Mas posso contar uma história numa perspetiva e, depois, o leitor constrói uma perspetiva contrária.

Do que gosta de escrever? Há temas que são recorrentes ou que o apaixonam?

Há dias, chamaram-me à atenção de que quase todos os meus livros começam com a morte. Constatei que é verdade e nunca tinha reparado nisso. Tenho uma relação estranha com a morte. Já estive por diversas vezes em situação de morrer e não morri, de maneira que encaro a morte com alguma relatividade.

Então usa a morte como ponto de partida para as suas histórias?

É possível, mas é inconsciente. Por causa disso, estou a todo o custo a evitar que o meu próximo livro comece com a morte. Tem de estar tudo vivo.

O que está a escrever neste momento?

Os meus últimos livros, O Fiel Defunto e O Último Mugido — foram escritos na perspetiva do escritor e da viúva, respetivamente. Então pensei: vou escrever uma história na perspetiva do assassino. Estou a tentar escrever as razões que levam um homem a matar.

Vai participar num festival através de meios digitais, em vez de ser presencialmente. É um mundo estranho para si?

É completamente estranho. Mas também penso que é importante fazer-se isto para que a covid-19 não fique a pensar que domina tudo. Estas entrevistas via Skype, WhatsApp e outras formas de comunicação são importantes para mostrar que não ficámos isolados. Mas que é uma forma anormal de participar, claro que é. E esperemos que, no próximo ano, possamos estar todos juntos.

Acha que as coisas voltarão à normalidade? Ou estamos no início de um mundo diferente?

Ao contrário da maioria das pessoas, não acredito que vá haver grandes mudanças no mundo. As lembranças destes momentos de calamidade e de confinamento desaparecerão, e o mundo retomará a sua marcha normal. Até porque não é a primeira vez que a Humanidade depara com uma situação de peste. A covid-19 é uma situação de peste, talvez mais grave porque é mais insidiosa e silenciosa. Mas a verdade é que, quando desaparecer, e vai desaparecer necessariamente porque o Homem vai inventar vacinas para combater isto, voltaremos à normalidade. Acontece com todas as revoluções e isto é uma revolução.

Há alguma personagem que tenha escrito a pensar: era esta pessoa que eu gostava de ser?

Um escritor está em todas as personagens que escreve. Em absoluto não, mas em grande parte sim. Eu estou em todas as personagens que criei. Por exemplo, quando crio um escritor uso a minha personalidade de forma exacerbada. Costumo dizer que, se não brinco comigo, não tenho o direito de brincar com os outros. Mas não gostava de ser uma personagem específica. Porque até posso juntar a essa personagem coisas que detesto, mas que são necessárias para lhe dar vida.