«Tenho uma relação de amor com a língua que falo.» É desta forma que a escritora Isabela Figueiredo testemunha a relevância do Dia Mundial da Língua Portuguesa, que será comemorado pela Câmara Municipal de Lisboa com um conjunto de atividades que servirão de lançamento do futuro Festival Literário 5L. Sem pudores ou vergonhas, a autora de Caderno de Memórias Coloniais reflete sobre uma língua que está cada vez mais infetada pelo inglês.
Vamos celebrar a primeira edição do Dia Mundial da Língua Portuguesa. Vê nestas iniciativas um valor acrescentado para a visibilidade da língua?
Não querendo dar uma resposta muito nacionalista, porque não sou uma pessoa nacionalista, tenho uma relação de amor com a língua que falo, com a língua materna. Essa relação de amor que tenho com a minha língua leva-me a querer que ela seja valorizada. Portanto, para mim, é importante a existência de uma celebração da língua que eu falo, porque é a celebração da minha cultura e da minha identidade. Para mim, é muito relevante que isto esteja a acontecer.
Há sempre alguma esperança depositada nestes momentos, que eles possam ir além da pura celebração e sirvam como chamada de atenção para a língua portuguesa. No seu entender, quais deveriam ser as prioridades na promoção e defesa da língua?
Antes de ir à sua questão, gostava de dizer que a promoção ou visibilidade de uma língua estão diretamente ligadas ao poder que um povo tem. O poder que a língua portuguesa hoje tem advém de ser falada pelos Brasileiros e não pelos Portugueses. O português do Brasil dá mais poder à língua portuguesa que o português europeu ou africano. Se bem que o português africano também seja muito importante. Portanto, o poder de uma língua está intimamente ligado ao poder que o falante tem no panorama internacional. Penso que a língua portuguesa devia ter muito poder, tem uma longa história. Voltando à sua pergunta, na promoção e defesa da língua parece-me importante o investimento na docência do português nos países africanos. Penso que seria fundamental estabelecer acordos com os países africanos de língua oficial portuguesa, porque convém não esquecer que o português convive com outras línguas locais, sobretudo fora das zonas urbanas. É preciso estabelecer acordos que ajudem ao desenvolvimento da docência do português, para que se fale mais português em paralelo com as línguas locais. Aliás, entendo que a própria União Europeia poderia entrar num projeto deste tipo.
Sente que falta uma estratégia comum aos países lusófonos em defesa da língua que os une?
Não é só a língua portuguesa. No mundo, o francês também perdeu importância, perdeu força. Eu aprendi a falar francês, e hoje são poucas as pessoas no mundo que falam francês. A língua franca, a língua de todos é o inglês. Penso que, e talvez seja um pouco utópico, nos deveríamos impor mais. Devíamos ter alegria em falar a nossa língua, eu tenho alegria em falar a minha língua.
Considera que a língua portuguesa está demasiado infetada pelo inglês, e talvez até seja mais evidente na linguagem do mundo dos negócios? Haverá um uso excessivo de expressões inglesas que têm equivalentes em português?
Sim, está completamente infetada, e até gosto dessa palavra, porque as expressões existem em português. Hoje, toda a gente fala inglês. Não sei se já reparou que no espaço académico há hoje licenciaturas, mestrados e pós-graduações que são lecionadas inteiramente em inglês. É necessário que professores e alunos recebam as aulas em língua inglesa, escrevam os seus trabalhos em inglês, quando estão em território português e universidades portuguesas. O problema é que há o domínio económico e cultural de uma língua que está a matar todas as outras línguas europeias. Este não é um problema exclusivamente português. O espanhol tem muita força na América Latina e nos Estados Unidos, mas na Europa a língua predominante é o inglês e isso incomoda-me. Não é só no mundo dos negócios e no mundo do trabalho que a língua inglesa prevalece, é também no mundo cultural e académico. Não vejo outra solução que não passe pela força do Instituto Camões na promoção dos cursos de língua portuguesa nas universidades estrangeiras, bem como na promoção de atividades culturais em língua portuguesa, com tradução. Este trabalho não pode desaparecer.
Nós, enquanto cidadãos, também temos um papel a desempenhar. Sente, como escritora, que os leitores estão a demonstrar mais interesse pelos escritores lusófonos? Sente, por exemplo, que os Brasileiros estão mais interessados em literatura portuguesa, os Portugueses mais interessados em literatura africana?
Sim, nas feiras internacionais que tenho frequentado, na Europa e no Brasil, existe muita curiosidade, sobretudo pela literatura africana. Curiosamente, a literatura portuguesa não é muito apetecível no mercado europeu. Normalmente os editores, nas feiras do livro europeias, olham com muita desconfiança para a literatura portuguesa. Com mais desconfiança do que olham para a literatura brasileira ou africana…
… dizem muitas vezes que a literatura portuguesa é demasiado onírica e poética.
Existencialista, ensaística, poética, onírica, pesada, difícil. Eu compreendo a ideia. Muitas vezes, a literatura portuguesa escapa a uma certa tradição que se espera da narrativa. Espera-se que a narrativa conte uma história e que essa história arrebate o leitor. Os escritores portugueses gostam de contornar essa regra. Isso faz com que seja difícil vender literatura portuguesa no mercado literário europeu. É preciso que apareça alguém a falar do livro, de preferência muito idóneo e que não seja português, porque os editores são muito desconfiados. Isso não acontece tanto com a literatura brasileira e africana.
Em Cadernos de Memórias Coloniais, utiliza uma metáfora muito curiosa, «sujar a camisa branca do pai», como sinal de rompimento de um statu quo. Sente que à literatura portuguesa falta sujar a camisa branca? Falta que se ligue mais ao real, ao quotidiano, às histórias?
Sei que não posso dizer isto, mas sim, acho que a literatura portuguesa precisa de sujar a camisa, como a literatura brasileira suja a camisa e como a literatura africana suja a camisa, sem medo, sem pudor, sem vergonha e sem esses pruridos que nós, Portugueses, temos em relação à vida. Temos um certo medo de viver, um fatalismo, que depois na arte pesa. Precisamos de abrir as janelas.
Foi isso que procurou nos seus dois livros (Caderno de Memórias Coloniais e A Gorda), onde apresenta uma escrita com bastantes arestas? Faltam mais arestas na literatura portuguesa?
Acho que há espaço para todos. Há espaço para os que querem escrever assim e para os que querem escrever assado. O que penso é que falta diversidade. As vozes têm de ter menos pudor. Têm de se copiar menos umas às outras.