Já escreveu um romance com a língua portuguesa como protagonista. Já viveu em Angola, Brasil, Portugal e Moçambique. José Eduardo Agualusa é um escritor com uma visão privilegiada sobre o espaço lusófono e não esconde o seu interesse por um «português global» composto por todas as suas variantes. A poucos dias da celebração do Dia Mundial da Língua Portuguesa, que será marcado por várias iniciativas da Câmara Municipal de Lisboa, deixa um apelo ao investimento na educação e cultura nos PALOP, pois esse vazio está a criar espaço para o aparecimento de movimentos radicais, como o Daesh, em Moçambique.
No próximo dia 5 de maio, celebra-se pela primeira vez o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Vês alguma relevância neste tipo de efemérides e alguma capacidade de chamar a atenção para a promoção do português?
Para falar com franqueza, não. Nunca percebi bem essa coisa dos dias mundiais, sobretudo, como é o caso, para uma língua. Acho que uma língua tem e deve ser celebrada todos os dias pelas pessoas que a falam. Por isso, não me parece fazer muito sentido. Também não percebo muito bem o que se pretende fazer com isso. Não percebo a utilidade.
Não há muito tempo, escreveste um artigo para o Expresso em que falavas da importância de uma irmandade da língua portuguesa e sobre a necessidade de ela saber conviver com as línguas nacionais de cada país. Essa convivência está a ser equilibrada?
Escrevi até um romance sobre a língua portuguesa, o Milagrário Pessoal, que tem como personagem central a língua portuguesa. Ele trata exatamente disso, da relação da língua portuguesa com as línguas locais. A língua portuguesa deriva de outras línguas, nomeadamente do latim e do árabe. Um árabe que chegou a Portugal através das populações africanas. Acho que, nos países onde se fala português, em África, essa relação ainda não é a mais democrática, a mais igualitária, no sentido em que se tem feito pouco pela dignidade das línguas africanas, as línguas nacionais, sobretudo em Angola e Moçambique. No caso de Cabo Verde, a situação do crioulo é bastante diferente. Em Angola, os falantes de língua portuguesa cresceram muitíssimo nos últimos anos e hoje quase metade da população fala apenas português, sobretudo os jovens. A maioria da população jovem fala apenas português. O crescimento da língua portuguesa tem-se feito à custa das línguas nacionais, e às vezes contra as línguas nacionais. Isto gera algum desconforto junto das pessoas que falam essas línguas nacionais, e até um certo rancor para com a língua portuguesa. Por isso, continua a ser muito importante devolver dignidade a essas línguas nacionais, fazer com que elas integrem o ensino. Os estudantes deviam ser alfabetizados nas línguas nacionais de cada país e cada região. O caso sul-africano devia servir de exemplo a países como Angola. Na África do Sul, cada província tem duas línguas oficiais que são utilizadas correntemente na vida pública.
Curiosamente, em Portugal, vamos sentindo cada vez mais a presença da cultura angolana e até a adoção de palavras angolanas na língua portuguesa. Talvez o caso mais evidente tenha sido o «bué», que passou a fazer parte integrante da língua portuguesa. Sentes que há um ganho nesta mistura de influências de ambas as partes?
Sim. Há muitas outras palavras que entraram na língua portuguesa. O português de Angola entrou efetivamente em força em Portugal por causa da música popular angolana. Isso é interessante, mas não é novo porque foi sempre assim. Há palavras africanas que entraram há tanto tempo que as pessoas não têm noção da sua origem. Por exemplo, «cambada», que vem de «camba» que significa amigo, ou «minhoca» que vem de «nhoca», que significa cobra. Agora, isso é muito interessante e faz parte das dinâmicas das línguas. É assim que se mantêm jovens, com adição de palavras novas, neste caso vindas do português de Angola, é da mesma língua inclusive, só que com uma variante diferente. Da mesma forma que o português de Portugal incorporou algumas palavras vindas do Brasil, sobretudo devido à força das telenovelas e da música popular brasileira.
É um facto que não podemos falar numa literatura lusófona. Hoje, a literatura é muito diversa e influenciada de diversas formas. Mas tu já viveste em Angola, Portugal, Brasil e agora em Moçambique. Com essa experiência, consegues identificar alguma influência da língua portuguesa na forma como pensamos? Há algum papel determinante da língua na forma como pensamos?
Não tenho a certeza. No fundo, esse é um dos temas do Milagrário Pessoal, que tem a língua portuguesa como protagonista. Não estou certo, mas acredito que sim. Acredito que as línguas também mudam as pessoas. Nós mudamos as línguas, mas as línguas também nos mudam a nós. É possível que haja pontes entre os países que falam essas variantes do português, ditadas pela partilha de uma língua comum.
Tens um estatuto muito especial por força de teres vivido em vários países lusófonos. Todos esses países te sentem como se fosses um pouco deles. Como é que vês essa quase cidadania lusófona informal?
Enquanto escritor, acho que o importante dizer é que o que me interessa é esse português global. Um português que é a soma de todas as suas variantes. Não me interessa, como escritor, apenas o português de Angola. A mim, interessam-me todas as variantes da língua e uso-as nos meus livros. Mas isso que estás a dizer é verdade: sinto-me em casa em todos esses países, dependendo das pessoas com quem estou.
Quando se fala no investimento de Portugal nos PALOP, o discurso é mais orientado para a economia do que propriamente para a cultura, para a promoção de redes de bibliotecas, para circulação de autores, para a edição de livros. Ainda estamos atrasados nesse investimento cultural?
Acho que o tem sido construído tem sido sobretudo pelas sociedades civis desses países e não tanto pelos governos. Mas não tenho dúvidas de que uma rede de bibliotecas públicas é fundamental em Angola e Moçambique, e aí Portugal e o Brasil podiam ajudar. Curiosamente, a última vez que falei sobre isso foi com um responsável pela embaixada chinesa, em Luanda. Portanto, é mais provável assistirmos à China a fazer bibliotecas em Angola do que Portugal. Isso é triste.
No campo da comunicação, também não temos muita informação sobre o que se vai passando nos países lusófonos, sobretudo os africanos. Veja-se a pouca informação que vamos tendo sobre a invasão do Daesh no Norte de Moçambique.
Aí não concordo contigo, acho que Portugal tem um noticiário sobre os países africanos bastante completo. O que se passa com esse caso em Moçambique é que o próprio governo moçambicano esconde essas notícias. Não permite que os jornalistas moçambicanos se desloquem ao Norte para reportar o que está a acontecer. Portanto, não há notícias porque não há condições para a entrada de jornalistas nesses locais. Essa informação não chega a Portugal porque também não chega aos Moçambicanos.
Há motivos para preocupações com estas movimentações do Daesh?
Há. O problema é que não sabemos o que se está a passar. Temos algumas ideias, sabemos que há grupos identificados com o Estado Islâmico, mas até que ponto essas ligações são reais não sabemos. Qual a força desses grupos também não sabemos. A primeira coisa que o governo moçambicano devia fazer era dar condições e apoio para que os jornalistas reportassem o que se está a passar.
Um padre de Pemba diz que são sobretudo jovens que estão envolvidos nestes grupos e que isso se resolvia com maior aposta na educação, formação e cultura. Concordas?
Concordo, é óbvio. O que quer que se esteja a passar ali explica-se pela ausência de Estado. O Estado não está a cumprir o seu dever de estar ali com escolas, com polícia, com postos de correio, etc. Depois, é preciso dar à juventude condições. Muita dessa juventude, inclusive na ilha de Moçambique [onde José Eduardo Agualusa agora vive], vai estudar para a Arábia Saudita. A Arábia Saudita oferece bolsas de estudo. Oferece bolsas de estudo em quê? Em Teologia Islâmica. Os jovens querem estudar Medicina, Direito, Engenharia, mas não têm acesso. Quando aparecem estas bolsas da Arábia Saudita, eles vão, mesmo que seja para estudar Teologia Islâmica. Quando retornam, retornam com ideias de um Islão muito mais radical, que entra em conflito com o Islão já africanizado e muito mais tolerante e que existe no Norte de Moçambique. É preciso dar apoio a esses jovens porque eles não têm perspetivas. Se Portugal e o Brasil dessem bolsas para estudar Direito, Engenharia, claro que a maioria preferiria ir estudar isso para Portugal e Brasil.